segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Nem Deus nem o diabo entendem de casamento!



Portal - OST - 60 x 70

Numa de suas tantas e geniais crônicas (Até que a morte...) Rubem Alves narra uma conversa com o diabo. Há quem diga ter sido fictícia, mas como já vi muito bluesman cedendo sua alma ao demo em troca de performances inesquecíveis, de pronto acreditei que de fato ocorrera.
Segundo Ruben, o teor do colóquio deu-se em torno da origem central da discordância entre Deus e o diabo: qual o laço que manteria unidos homem e mulher para todo o sempre, amém.
Deus teria defendido a tese de que o amor seria a fonte que manteria a coesão ad eternum. Já o diabo teria retrucado dizendo que o amor é “cola fraca” e, portanto, transitório pois nele vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. E sendo ela presente, a qualquer momento um amor enfraquecido poderia ser trocado pela ilusão de um novo amor. Já o ódio, segundo o diabo, traz consigo um conteúdo de permanência pois dele emana a negação da possibilidade de deixar o outro buscar a felicidade junto a outros amores, pelo que cada qual preferiria manter a união mesmo que a custo da própria felicidade - o que mais importaria seria manter a infelicidade do outro.

Embora tenha rejeitado parte da tese Dele, rebelei-me sobretudo contra a diabólica tese do ódio. Resolvi tomar uma atitude. Liguei para o secretário do diabo e pedi para marcar uma audiência.
- Alô?!
- “Secretário Mall Huff falando...”
- Gostaria de marcar uma audiência com o diabo.
- “Impossível! Nesta época de eleição o homem está muito ocupado”, disse-me Mall
- Mas estou com um pouco de pressa. É importante, tentei argumentar.
- “Neste caso, posso até te passar na frente, mas...”
- Sem mas, Sr. Mall Huff. Sendo assim, eu espero. Marca para quando for possível.
Longos meses se passaram até o dia do esperado encontro com o famigerado.
No dia e hora marcados, lá estava eu. O secretário anunciou-me. Entrei na imensa sala, assustadoramente forrada com um carpete vermelho até o teto, inclusive. Sentei-me à frente do dele. Ao contrário do que descrevera Rubem Alves, achei o diabo um tanto quanto andrógeno. Sei não, pensei. Nervoso, acendi um cigarro.
- “Apague!”, ordenou-me com a voz empostada, tentando me colocar na defensiva.
- Mas até o senhor...?
- “Sim, até eu! Não quero cheiro de fumaça por aqui. E senhor é Ele, disse-me, apontando o dedo para cima.”
Constrangido, apaguei o cigarro na saliva e guardei-o no bolso. Bom, mas eu vim aqui para...
- “Eu sei por quê você veio. Não pense que é só Ele que sabe tudo o que se passa. Eu também sou onipresente e onisciente.”
- Pois então está bem. Como tu bem sabes, nego-me a aceitar que o ódio seja o amálgama que sedimenta as relações entre homens e mulheres. Se assim fosse, porque razão se casaria?
- “Pela ilusão do amor e por sexo fácil e seguro.”
- Não creio, sexo nunca foi tão acessível. E para segurança existem os preservativos, contra-argumentei.

- “Tu estás esquecendo que quando homens e mulheres casam, normalmente estão embriagados pela paixão, que os cega.”
- Discordo, disse-lhe, pois até chegarem a ponto de decidirem casar-se, a paixão normalmente já foi ultrapassada pelo que chamamos amor. E o amor, sabemos, é a superação do vôo cego a que outrora estavam submetidos os apaixonados. E assim, a razão torna a fazer parte de seus horizontes.
- “Tudo bem, mas até agora tu ainda não provaste que não é o ódio que torna perene os relacionamentos.”
- Ora, seu demônio, parece-me óbvio que o homem é um ser histórico e, como tal, é naturalmente um observador dos fatos, mesmo que vez ou outra repita erros cometidos. Entretanto, este tipo de recorrências normalmente diz respeito a fatos que envolvem um grande número de pessoas.
- “Não entendi”, disse o diabo.
- Vou te dar um exemplo: por acaso não é comum vermos políticos corruptos serem sucessivamente reeleitos?
- “Sim, mas estes não só são meus protegidos como sempre dou uma forcinha extra quando preciso”, argumentou com indisfarçável garbo.
- Tu estás completamente enganado, diabinho. As pessoas o fazem ou por distração, ou por falta de informação, ou por indução mesmo, ou seja, não observam com o esmero que devotam a casos que lhes parece dizer diretamente respeito – embora eu entenda que a política diz tanto respeito às pessoas quanto o casamento.
- “Está bem, mas onde entra o casamento e o ódio?”
- Calma, meu sulfúrico rapaz (senti que estava dando as cartas e, por isso, cresci na parada). O que quero lhe dizer é que grande parte das pessoas aprende com as experiências dos outros pelo método da observação pura e simples. Claro, às eleições nem todos dão o devido valor e, por isso, cometem erros. Já em relação ao casamento a coisa muda de figura. Qualquer um tem inúmeros exemplos à sua disposição, com fartos elementos a serem observados. Ora, sendo o casamento algo que diz respeito clara e diretamente a vida de todos – ou quase todos -, é natural que prestem maior atenção ao que ocorre nele nos exemplos mais próximos. Correto?
- “Sim, mas e daí?”, murmurou o maléfico.
- Simples: se o ódio fosse realmente a razão pela qual os casais permanecem juntos, seus efeitos, sendo visíveis, seriam facilmente observáveis. Quem, então, casaria estando ciente do profundo mal-estar que um tipo de relação desta provoca? Tu bem sabes que poucos o fariam. E nem me venha com a idéia de que os sádicos se casariam. Eles até existem, mas são poucos. E vocês não brigaram por poucos, não é?
- “Agora tu me pegaste. Mas então tu achas que Deus está certo?”
- Bom, eu acho que Ele chegou mais perto. Os casais se juntam por uma série de razões, entre as quais o amor é a motivação preponderante. E permanecem por ele ligados, embora também por outras questões, todas elas motivadas pelo prazer, ou seja, jamais pelo ódio pois deste apenas resulta sofrimento. Portanto, o ódio nem de longe guarda qualquer relação com a perenidade ou não do casamento. Ao contrário, ele seria sua ruína.
- “É, mas o número de divórcios só está aumentando...”
- Pois é justamente o que dá mais força ao meu ponto de vista.
- “Não entendi de novo.”
- Olha só: como as mulheres adquiriram sua independência financeira ao entrarem definitivamente no mercado de trabalho, passaram a separar-se quando o ódio começa a fazer parte da relação. E os homens, por sua vez, passaram a fazer o mesmo pois sentem menos culpa ao irem embora. E assim ambos vão em busca de novos amores, ou seja, ninguém mais se submete a aturar o outro quando a coisa não vai bem. Entendeu?
- “Sim, mas nosso plano era de que os casais deveriam ficar juntos até que a morte os separasse... E quanto a isso Ele e eu concordávamos plenamente.”
- Pois é justamente aí que vocês se atrapalharam e acabaram brigando por nada.
- “Olha o respeito!”
- Eu sei que é duro aceitar isso, mas a verdade é que vocês brigaram por algo absolutamente sem sentido. A questão é que tu e Deus estão por aí desde sempre, então ficam imaginando coisas para a vida toda das pessoas a partir das suas noções de tempo. Ora, para nós uma vida inteira só não é muito quando o casamento vai bem; ao contrário, se vai mal, a perenidade se torna intolerável.
Então, se aceitas um conselho, procure Deus e humildemente proponha a Ele o que nós mortais vez ou outra fazemos: discutam a relação. Quem sabe vocês não chegam a conclusão de que está na hora de vocês pararem com essas picuinhas. Afinal, para mim parece claro: vocês não entendem nada de casamentos.

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