quarta-feira, 8 de julho de 2009

Histórias curtas III - Julinho "Não me lembro" e a revolução.


Quarenta anos depois lá estávamos, sentados à mesma mesa no canto dos fundos do Bar do Bigode. Julinho "não me lembro" e eu. Ao lado da mesa a minúscula janela basculante continuava a mesma: suja e emperrada. Mas a fresta estratégica ainda propiciava o mesmo ângulo de visão.
Ah Julinho, bons tempos aqueles né ?
Não me lembro.
Tu continua o mesmo, Julinho. Tirando a barriguinha...
Não é gordura é cirrose mesmo...
Pô Julinho eu tanto te avisei prá não beber tanto. Imagina se a revolução tivesse dado certo.
Pois é.
Até onde me lembro acho que tu também não mudou muito.
É Julinho, além dos grisalhos, hoje tô trabalhando sério. Sou consultor sênior em análise de processos de crédito para venda de produtos manufaturados direto ao consumidor com possibilidade de retorno.
Nossa, teu crachá deve ser um cartaz...
Não te impressiona Julinho, são eufemismos, apenas eufemismos. Agora é moda. Na real quando alguém quer comprar alguma coisa no crediário eu ligo pro SPC. Só isso.
E tu, faz o quê ?
Um bico aqui, outro ali. Sem compromisso.
Mudando de assunto, putz Julinho, a gente podia ter repetido o Chê e o Comandante Fidel. Mas deu tudo errado né.
Nem me lembre, nem me lembre.
É, naquela época Julinho "Não me lembro" e eu arquitetamos um plano infalível para tomar o poder dos milicos.
Nossa célula revolucionária era composta dele e eu, como preconizava qualquer Manual do Revolucionário da época. Quanto menos gente em cada célula melhor. Se um caísse o risco era menor. Se o Julinho caísse, então, nem se fala. Eu tava garantido. Explico: depois das dez e meia da manhã o Julinho religiosamente já estava de pileque e o que fazia depois disso dificilmente se lembrava depois. E as coisas do dia anterior nem se fala. Os companheiros de outras células eram conhecidos apenas por codinomes. Tudo bem simplezinho mas eficiente.
Bueno. A mim cabia articular as células da cidade e cada célula, por sua vez, arregimentar os trabalhadores e estudantes de sua região. As reuniões eram feitas mediante sorteio dos aparelhos disponíveis. Aparelhos ??? É, aparelhos era como chamávamos cada casa ou apartamento onde os revolucionários moravam. As reuniões eram uma obra. Discutia-se de tudo: o governo do Bosta e Silva, ou era o Castelo ou (ai que medo) era o do Médici ? Nem me lembro mais, mas de qualquer forma discutíamos o governo, a conjuntura nacional, os meios de comunicação, a organização, a própria discussão e nem sei mais o que. Como discutíamos...
Bom, num dado momento concluímos que as condições objetivas estavam dadas e a hora era aquela ou nunca mais. Não-me-toque seria conhecida mundialmente. E Julinho e eu como comandantes. Que glória. Entraríamos para a história. Mas - sempre tem um maldito mas - para tudo dar certo a aliança trabalhadores da cidade e do campo deveria estar selada para que o levante se confirmasse. Na cidade estava tudo certo. Lembra disso Julinho ?
Não me lembro, não me lembro.
Então vou refrescar tua memória: se na cidade estava tudo certo. Faltava o quê ?
Não me lembro, não me lembro.
O campesinato Julinho, o campesinato.
Ah é...
E a quem cabia fazer os contatos com o campesinato hein, hein ?
Não me lembro, não me lembro. Quem ? Quem ?
A ti, Julinho; a ti, Julinho.
Então a culpa foi minha ?
Na boa, nem sei se foi tua culpa. Eu sabia que depois das dez e meia tu já tava de pileque e que fatalmente tu ia esquecer de fazer os contatos com os camponeses. Eu devia saber, eu devia saber...
Mas Julinho, pelo amor de Deus me diz por quê tu não me avisou que a articulação não tava sendo feita como combinamos ???
Com um sorriso prá lá de amarelo Julinho responde: não me lembro, não me lembro...
Tudo bem Julinho, deixa prá lá, foda-se.
Bigode !!! Mais uma ceva, mais uma ceva...sem culpas, sem culpas...

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