quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A dupla vida de Cauê Sol


Cinco e quarenta e cinco da manhã. Como de costume, Cauê Sol é acordado por batidas violentas na porta de seu quarto. Aos berros, a convocação:
- Acorda filhão, o mar tá glass; tá gringo; alto swell. Tô me mandando prá lá. Ah, a batida tá no liquidificador. Tô te esperando, hein. Fui.
- Puta que o pariu. Mais um dia, pensou Cauê. Que merda.
Com a disposição do goleiro ao buscar a bola no fundo das redes, Cauê Sol lentamente tenta abrir os olhos ainda remelentos, quando a voz do pai-sargento reverbera outra vez em seus tímpanos:
- Filhão, voltei. Pega o Long John que tá frio. Não esquece da batida.
Ainda sem a energia necessária para pronunciar qualquer palavra, Cauê é só pensamentos: e ainda tenho que tomar aquela gororoba com aveia, germen de trigo e linhaça...que inferno !
Assim começa mais um dia na vida de Cauê Sol.

Filho de pai surfista, de mãe surfista, de avós surfistas, de bisavós surfistas, de trisavós, tataravós, pentavós, sexavós, heptavós, octavós...e sei lá eu mais que avós. Todos surfistas.
Mas essa é só a ponta do iceberg da minha geladeira. Na real a tradição surfista da família começou a mais ou menos 130 milhões de anos. Mais precisamente quando o continente africano se separou do americano; assim que as fendas foram se abrindo e permitindo a infiltração das águas oceânicas. Naquela tarde um homenzinho - que morava exatamente no local das primeiras rupturas - acordou de sua sesta com sua casinha balançando loucamente. Não demorou a cair, sendo invadida pelo oceano que se intrometia por ali. Bom de raciocínio - o que comprova que os surfistas sofreram uma forte mutação - agarrou a esposa pelos cabelos, subiu numa telha de zinco e saiu deslizando sobre a água. Não, não sei como ele tinha telhas de zinco naquela época. Mas tinha e foi a sorte deles. Já seus conterrâneos de aldeia viraram fósseis.
O nome daquele homem ? Pleitohomenídionenderdhal Sol. Para os íntimos, Plei Sol. Para a companheira: ai, ui solta meus cabelos Plê ! Plei Sol não era homem dos mais delicados. Também pudera, David Beckhan não seria o melhor exemplo do homem daquele tempo. De todo o modo, a saga marítima da família Sol começou com aquele cara. Isso é certo. O único mistério que permanece é que não se sabe bem se a casinha ficava no continente africano ou no americano. Mas isso é irrelevante
O que importa é que Cauê Sol, como filho único, carrega o peso de toda essa tradição. Uma responsa de 130 milhões de anos. Não é pouca coisa.
Mas tudo correria como sempre foi caso não tivesse Cauê Sol um secreto dilema: não queria ser surfista. E pior, sonhava em ser gaudério; um gauchão com um bigodaço daqueles, tão grande que nem vírus de gripe A ousaria tentar penetrar nas narinas. Não queria parafina no cabelo, bermudão, prancha e suco de açaí. Sonhava era com um puta chapelão, bombacha bem larga, cuia de chimarrão e uma térmica cheia de água bem quente.
Já tinha até feito uma placa: troco prancha por um cavalo. E se o bicho for bom, vai junto todos os acessórios de surfista.

O certo é que o secreto desejo de Cauê poderia provocar uma nova ruptura do tamanho da separação dos dois continentes. Com exagero. Sem exagero, daria uma bela crise familiar. Mas que crise.

Então restava a ele viver uma vida dupla. De dia, um surfista ousado...e no anonimato das madrugadas pilchava-se da cabeça aos pés e pulava prá frente do companheiro espelho prá prosear um cadinho.

Duas da manhã e, como de costume, lá estava ele:
- Oigalê, acorda espelho !!! Sou eu, Teodorico Salustiano.
Isso mesmo, Cauê já tinha até um novo nome. Segundo ele, mais compatível com sua nova personalidade.
- Puta que o pariu. Tu vai me encher o saco de novo a esta hora, Cauê ? disse o espelho.
- É que preciso conversar. Não tô mais agüentando. Amanhã vô sair do armário...E não é Cauê; é Teodorico Salustiano !
- Calma Teodoro, calma. Pensa bem, olha as conseqüências...Teu pai vai querer te matar. E cuidado com esse papo de armário.
- Não adianta, tô decidido ! E não é Teodoro. É Teodorico Salustiano !!!
- Tá bem, mas olha lá o que tu vai fazer. Pensa só o que tuas namoradinhas vão dizer quando te virem com essa calça fofa ridícula...
- Não fala assim !
- Como não ? Esse modelo de calças foi pego de um navio árabe que afundou na costa gaúcha. Roupinha das mil e uma noites...rárárá, gargalhou o espelho debochadamente.
Já irritado, com a voz empostada Cauê tenta impor respeito.
- Olha a heresia. Isto é a indumentária tradicional do gaúcho !!!
- Que indumentária Téo ? Todo mundo usa roupa. Só o gaúcho usa indumentária, rárárá.
- Não me chama de Téo. É Teodorico Salustiano. E não debocha, não debocha...
- Relaxa Téozinho. Pensa nas minas de tanguinha te rodeando na beira da praia... Que tu qué mais ?
- Tô cagando prá elas. Quero arrumar uma prenda de saia rodada e flor na cabeça.
- Ah pááára Téozinho. Vai trocar as gostosinhas da praia por aquelas mocréias vestidas com aquelas saias gigantescas e horrorosas que os gaudérios copiaram de um manual de tradicionalismo uruguaio qualquer, só prá arrumar uma "roupa oficial" prá mulherada tradicionalista ? Tu tá é ficando louco !
- Não fala assim comigo !!!
- Não grite Téo. Tu vai acordar teus coroas. Azar é teu...
- Desculpe.
- Téo meu querido. Pensa bem. Se tu visse o que vejo, tu pensaria de outra forma. Olha só: é duas da manhã e tu tá no teu quarto vestindo um chapéu enorme, um delicado e meigo lencinho no pescoço - igual ao que o Clóvis Bornay usava - uma camisa cheia de rendinhas, um cinto gigantesco com uma fivela que deve pesar uns três quilos, uma calça fofa parecida com a que o Aladin usava e um par de botas com esporas. E não vou nem falar do chicotinho. Convenhamos...
- Tu não me entende, disse Teodorico quase chorando.
- Mas meu querido, pensa bem: tu é carioca; um autêntico menino do rio, calor que provoca arrepio, dragão tatuado no braço, calção corpo aberto no espaço, coraçãããooo...
- Que é isso espelho ????? Te recomponha. E já !
- Desculpe, me passei. É que eu não me conformo...
- Como assim não me conformo, espelho ?
- Sei lá Téozinho, sei lá...
- Ih espelho, espelho meu, tu tá me deixando grilado. Acho melhor pararmos por aqui...
- Também acho Téozinho. Vamos dormir.
- Tá bem.
- Boa noite.
- Boa noite.

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