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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Aprendizado democrático: será que evoluímos tanto quanto esperávamos ?

Eleições são ótimas por muitos fatores, e um deles que me é muito caro é a viabilização do estímulo à discussões a respeito do que já foi, está sendo ou será feito pelos atuais ou pelos que já foram ou pelos que ainda pretendem sentar-se nas fofas cadeiras dos palácios governamentais e parlamentos.

E como otimista incorrigível - ou talvez nem tanto - sempre tive em mente que o fim da ditadura oportunizaria um aprendizado democrático, além da possibilidade de escolha dos nossos representantes na esfera política - o que não é pouco. Mas para além disso, também introduziria um novo assunto em nossas relações na hora do cafezinho no trabalho. Claro que nem de longe tem a importância dos comentários acerca da mini-saia daquela secretária ou, e principalmente, dos debates acerca do jogo do domingo; ainda mais quando aquele juiz ordinário marcou aquele pênalti que só ele viu: "baita edílson !" - para quem não sabe Edílson é o nome de um árbitro flagrado em armações de resultados e que, por isso, virou adjetivo.

Mas nem sempre foi assim. Naqueles coturnos (desculpe) tempos da ditadura militar não podíamos falar sobre política, nem na hora do cafezinho nem em qualquer outra, a não ser ao pé-do-ouvido; porém mais do que os dedos-duros, o hálito do cafezinho com cigarros conspirava contra essa possibilidade. E mais, quando o futebol entrava em férias e a queridona vinha de pantalonas com rodelas de pizza, restava ficarmos a conversar desanimadamente sobre amenidades e coisas sem importância tais como a possível oposição entre o existencialismo e o estruturalismo ou a respeito do idealismo kantiano ou sobre os novos lançamentos automobilísticos - se bem que neste quesito eu ficava de fora pois o máximo que consigo é distinguir uma kombi de um fusca. Assim, sem assuntos relevantes e palpitantes, o cafezinho descia rapidamente e lépidos voltávamos às emocionantes rotinas contábeis sob os olhares satisfeitos do comandante - que era como o chefe adorava ser chamado. É, as ditaduras, além de suas práticas detestáveis produzem também esse tipo de efeito colateral: inspirar modos de agir mesmo a quem nunca passou perto da caserna, mas que lá em seu íntimo secretamente adora hierarquias, sobretudo no que se refere ao "manda quem pode e obedece quem tem juízo".

Mas como até sessão no dentista acaba, com a ditadura não foi diferente. E em 1988, lá estávamos prestes a eleger um novo presidente. A novidade encharcou a todos e acalorados debates eram travados onde quer que fossem, e sem receios. Uma maravilha. E a hora do almoço na Associação Macrobiótica era um palco privilegiado para nossos apaixonados embates. Intensas pelejas lá eram travadas, e só não descambavam para a baixaria por dois motivos: o primeiro era a suave música oriental que envolvia a todos no recinto, o que nos deixava um pouco zen's; e o segundo, e mais importante, era o quadro que indicava que mastigar cem vezes a cada garfada concorria para a boa digestão - e nos submetíamos religiosamente a tal regra. Porém mais do que o saudável efeito, servia também para balizar o tempo que cada um tinha para expor seus argumentos, réplicas e tréplicas. Assim, cada um tinha o exato tempo de três garfadas do rival, ou seja, trezentas mastigadas para expor seu pensamento. Desta forma, tudo ocorria perfeitamente e ocupávamos todo o intervalo de almoço com nossos debates e intensa mastigação. E tudo acontecia num nível aceitável. Para falar a verdade, uma só vez me vi obrigado a usar um recurso nada ortodoxo. Explico: um rapaz "direitão" sentou-se em nossa companhia e pediu para entrar na discussão. Explicamos-lhe as regras e começou o baile. Lá pelas tantas notei que ele estava surrupiando meu tempo mastigando menos vêzes do que o combinado. Emputeci e esperei a hora de falar e, consequentemente, de ele mastigar novamente. Não hesitei e, enquanto argumentava, peguei uma larvinha simpática que passeava alegremente por nossa salada - comprovação indiscutível de que não se usava agrotóxicos - e coloquei-a para caminhar em cima do feijão azuki do prato dele. Deu o maior rebuliço. Nunca mais o filhotinho da ditadura sentou-se à nossa mesa. Melhor assim; onde já se viu ? De qualquer forma, aprendíamos democracia assim mesmo, o que me dava esperanças de que em vinte anos o povo estaria craque em democracia.

Pois não é que os tais vinte anos passaram e as discussões - ao menos em parte - ao invés de serem travadas com argumentos mais fundamentados, mais racionais e menos rasos - como eu esperava - estão se dando num nível cada vez mais superficial, até mesmo preguiçosamente. E via e-mail; toneladas deles. Como todos, recebo diariamente e-mails com piadinhas desabonatórias e absolutamente sem-graça de quem detesta determinada corrente política - e o curioso é que os conteúdos sempre dizem respeito a uma só candidatura. De qualquer forma, independentemente de preferências partidárias, ponho-me a pensar se é possível alguém definir seu voto a partir de argumentos tão frágeis. E querem saber ? Fico com a triste sensação de que é, afinal, se quem os manda acha possível sensibilizar o receptor, provavelmente poder-se-ía ser convencido também. Lamentavelmente. E sem cafezinho ou trezentas mastigadas a convencê-los.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Tanta mentira; tanta força bruta...



O bom de comer pizza é que dificilmente deixamos de nos surpreender pois a única parte dela que pouco muda é a massa; já as coberturas, sua crescente multiplicidade não deixa nosso paladar enfadar-se. Mas nem todos são agradáveis...

Como já é de conhecimento público, o Supremo Tribunal Federal, por sete votos a dois decidiu por validar a Lei de Anistia de 28 de agosto de 1979. Para os mais desavisados, a referida lei anistiou a todos os que cometeram crimes políticos ou conexos a estes durante os vinte e cinco anos em que durou a ditadura militar no Brasil.

Numa breve recuperação histórica - não custa lembrar aos que não viveram aquele dramático período ou nada leram a respeito - em 1964, através de um golpe de estado, o presidente eleito João Goulart foi deposto e o que se seguiu foi uma ditadura militar que fechou todos os canais e instrumentos para o mínimo exercício de qualquer forma de democracia durante vinte e cinco anos. E neste contexto, o direito internacional há muito consagrou como legítimo o direito dos povos de pegarem em armas. Foi exatamente o que parte dos que lutaram contra a ditadura fez; outros tantos buscaram formas menos drásticas.
Já o regime utilizou-se da cassação, exílio, perseguição, tortura, estupro, assassinatos e ocultação de cadáveres dos opositores do governo.

No entanto, a referida lei anistiou a todos como se iguais fossem os crimes e contextos nos quais aconteceram, desprezando diferenças fundamentais: os opositores que sobreviveram tem cara, nome, endereço, enfim, são plenamente identificados, além de terem sofrido todas as punições possíveis por parte do Estado. Já os torturadores não só continuam impunes como, em grande parte, protegidos pelo anonimato, continuam circulando por aí como fantasmas, talvez à espera de algum sinal para poderem retornar à cena. Enquanto isso levam tranquilamente suas vidas. Alguns, como o delegado Calandra - que foi guindado a um alto posto da polícia paulista e de lá saiu apenas após pressão de ONG´s - gravitam perigosamente pelos círculos do poder. Até por isso não se trata de revanchismo, mas também da necessária eliminação de qualquer possibilidade de acesso dessa "gente" à vida pública, assim como para servir de alerta pedagógico de que o padrão civilizatório atual não aceita mais este tipo de conduta criminosa.

Retornando ao julgamento, dois argumentos utilizados pelos magistrados causaram espanto pelo cinismo e audácia dos magistrados:

O primeiro foi o de que a Lei da Anistia resultou de uma ampla negociação.

Não foi ! Os militares não negociavam; faziam. E ponto final. Na época, aliás, as oposições organizaram o "Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo" e a própria OAB organizou ato público em desagravo ao projeto. Então a negociação foi com quem mesmo ? A própria votação no Congresso Nacional sequer foi nominal, ou seja, o partido que dava sustentação ao governo, a Arena, votou em bloco a favor da Lei e o MDB - que era a oposição consentida - votou em bloco contra.

Em suma, o governo produziu a lei e as lideranças votaram. E como a Arena era maioria - uma maioria construída com senadores biônicos - a Lei de Anistia foi aprovada. E para quem não lembra, senadores biônicos eram políticos governistas eleitos sem serem votados. Simples assim. Claro, amigos, as ditaduras latino-americanas dos anos sessenta e setenta do século passado sempre prescindiram de sutilezas e complexidades; sua filosofia seria quase infantil, não fosse tão truculenta, e poderia ser resumida numa expressão tão cara aos ditadores da época: "Brasil: ame-o ou deixe-o". Na verdade, os militares de então - que na verdade representavam os interesses da burguesia nacional e internacional - confundiam o país consigo mesmos, por isso, na prática a tradução correta do lema era: ame-nos ou deixe o Brasil !

O segundo argumento foi ainda mais trágico: chancelaram e avalizaram a impunidade escudando-se na expressão contida na lei e que anistiava a todos os que cometeram crimes políticos e conexos a eles. Conforme o entendimento do STF, por crimes conexos aos crimes políticos entenda-se estupro, tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres e outras tantas manifestações de barbárie por parte de policiais civis e militares a serviço da ditadura, ou seja, tudo era permitido. Mas esta compreensão do que seja crime conexo nem de longe é pacífica, como por exemplo entende o jurista Hélio Bicudo http://anistia.multiply.com/reviews/item/45

A questão, mais do que firulas jurídicas, é de que o Brasil é o único país latino-americano que não tem disposição para resolver seu passado, ao passo que os demais fazem os devidos acertos, punem seus bárbaros, depuram suas instituições e deixam bem claro a intolerância quanto a este tipo de crimes. Mas nós preferimos seguir caminhando sobre o fio da navalha da impunidade ou, pior ainda, nossas elites talvez prefiram não descartar definitivamente aquele tipo de solução para manutenção do status quo.

Por tudo isto, nesta quinta-feira, 20 de maio de 2010, quando Brasil estará no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CDHI) - ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA) - por conta do desaparecimento de presos políticos da Guerrilha do Araguaia e da impunidade de eventuais responsáveis, estarei na arquibancada da imaginária arena como um autêntico romano com a mão fechada e o polegar estendido para baixo, pois espero sinceramente que sejamos estrondosamente condenados.

Ao contrário do S.T.F., acredito que nesta instância não nos servirão mais uma pizza com gosto de sangue. Pelo menos é o que espero.