
Numa breve recuperação histórica - não custa lembrar aos que não viveram aquele dramático período ou nada leram a respeito - em 1964, através de um golpe de estado, o presidente eleito João Goulart foi deposto e o que se seguiu foi uma ditadura militar que fechou todos os canais e instrumentos para o mínimo exercício de qualquer forma de democracia durante vinte e cinco anos. E neste contexto, o direito internacional há muito consagrou como legítimo o direito dos povos de pegarem em armas. Foi exatamente o que parte dos que lutaram contra a ditadura fez; outros tantos buscaram formas menos drásticas.
Retornando ao julgamento, dois argumentos utilizados pelos magistrados causaram espanto pelo cinismo e audácia dos magistrados:
O primeiro foi o de que a Lei da Anistia resultou de uma ampla negociação.
Não foi ! Os militares não negociavam; faziam. E ponto final. Na época, aliás, as oposições organizaram o "Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo" e a própria OAB organizou ato público em desagravo ao projeto. Então a negociação foi com quem mesmo ? A própria votação no Congresso Nacional sequer foi nominal, ou seja, o partido que dava sustentação ao governo, a Arena, votou em bloco a favor da Lei e o MDB - que era a oposição consentida - votou em bloco contra.
Em suma, o governo produziu a lei e as lideranças votaram. E como a Arena era maioria - uma maioria construída com senadores biônicos - a Lei de Anistia foi aprovada. E para quem não lembra, senadores biônicos eram políticos governistas eleitos sem serem votados. Simples assim. Claro, amigos, as ditaduras latino-americanas dos anos sessenta e setenta do século passado sempre prescindiram de sutilezas e complexidades; sua filosofia seria quase infantil, não fosse tão truculenta, e poderia ser resumida numa expressão tão cara aos ditadores da época: "Brasil: ame-o ou deixe-o". Na verdade, os militares de então - que na verdade representavam os interesses da burguesia nacional e internacional - confundiam o país consigo mesmos, por isso, na prática a tradução correta do lema era: ame-nos ou deixe o Brasil !
O segundo argumento foi ainda mais trágico: chancelaram e avalizaram a impunidade escudando-se na expressão contida na lei e que anistiava a todos os que cometeram crimes políticos e conexos a eles. Conforme o entendimento do STF, por crimes conexos aos crimes políticos entenda-se estupro, tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres e outras tantas manifestações de barbárie por parte de policiais civis e militares a serviço da ditadura, ou seja, tudo era permitido. Mas esta compreensão do que seja crime conexo nem de longe é pacífica, como por exemplo entende o jurista Hélio Bicudo http://anistia.multiply.com/reviews/item/45
A questão, mais do que firulas jurídicas, é de que o Brasil é o único país latino-americano que não tem disposição para resolver seu passado, ao passo que os demais fazem os devidos acertos, punem seus bárbaros, depuram suas instituições e deixam bem claro a intolerância quanto a este tipo de crimes. Mas nós preferimos seguir caminhando sobre o fio da navalha da impunidade ou, pior ainda, nossas elites talvez prefiram não descartar definitivamente aquele tipo de solução para manutenção do status quo.
Por tudo isto, nesta quinta-feira, 20 de maio de 2010, quando Brasil estará no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CDHI) - ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA) - por conta do desaparecimento de presos políticos da Guerrilha do Araguaia e da impunidade de eventuais responsáveis, estarei na arquibancada da imaginária arena como um autêntico romano com a mão fechada e o polegar estendido para baixo, pois espero sinceramente que sejamos estrondosamente condenados.
Ao contrário do S.T.F., acredito que nesta instância não nos servirão mais uma pizza com gosto de sangue. Pelo menos é o que espero.