quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O dia em que Edu K assassinou Camel.

Camel era um cara de vanguarda - pelo menos se achava um. Na moral nem era esse o seu nome, mas gostava. O que ele curtia mesmo era de dar o primeiro passo antes dos outros. Dos outros pessoas; não dos outros passos, certo ? Embora muita gente nem se dê conta, mas até sem querer todo mundo tem a mania de se reunir em torno de coisas que lhe fazem sentido. Quase que automaticamente. Com Camel não era diferente.
Só que para ele a música era o fato-gerador a partir do qual via uma certa filosofia de vida, um certo sentido. Por isso procurava qualquer novo movimento antes que qualquer um. Então tava sempre ligadão nas novidades. Tem gente que não imagina como, mas nem sempre existiu FM. MTV e Internet . Até a tv era artigo meio que de luxo. Mas Camel, que não tinha nada disso, tinha um rádio que pegava qualquer emissora do planeta - era sua janela para o mundo.

Nos anos sessenta, ainda adolescente estreou no que iria ser seu périplo camaleônico. De uma hora para outra chocou a todos na pequena cidade de Entrevero do Sul ao aparecer com um imenso cabelão, roupas coloridas e aquele "olhar de peixe morto" que iria ser característico dos bichos-grilo - hoje é sabido que estava usando peruca enquanto o cabelo crescia. Claro, não podia perder tempo esperando o cabelo crescer para não ficar para trás do movimento hippie que emergia com toda força. Quanto ao olhos vermelhos e o olhar caidão permanece um mistério. Imaginar que alguém pudesse conseguir um simples baseadinho naquela minúscula cidade e naqueles dias é quase como imaginar os Beatles ou Stones fazerem um show em Pindamonhangaba. Então, fora o trago, o que a gurizada da época usava para se chapar era raspa de unha com coca-cola e cibalena. E juravam que dava onda. Era o máximo. Mas Camel, como sempre superou. É o que se imagina. Aos poucos, para escândalo da sociedade local, tentou organizar uma comunidade alternativa. Não deu certo. Faltou parceria.
Em 1970, quando o movimento começava a fazer sucesso e ser mais conhecido na cidade, Camel foi o primeiro a anunciar que John Lennon havia decretado o fim do sonho. Perplexa, a gurizada passou a respeitá-lo, embora ninguém soubesse como ele sabia pois só falava português. E olhe lá. Mas ele continuava firmaço e na maior banca. Dizia se corresponder com Timothy Leary e jurava ter um telegrama da Janis Joplin escondido na casa de sua ex-namorada.. Se pudesse entrar pegaria, mas tinha jurado não pisar mais lá quando foi expulso pelo sogro. E só por ter tentado convencer a namorada e a sogra das vantagens que representavam o amor livre e a pílula anticoncepcional e que assim não via razão para não se libertarem praticando um sexo grupal. Os três.

Mas como nada lhe abalava, seguiu convicto nesta balada até 1972.
Foi quando ouviu Ziggy Stardust do David Bowie. O faro vanguardista dele se aguçou. Taí, pensou.
Em seguida sua irmã começou a dar falta de seus cosméticos, maquiagens e não sei mais o quê. Estranho.
Quando se sentiu seguro, Camel apareceu com o cabelo desbastado, a boca pintada de carmim, os olhos contornados com lápis preto e uma roupa brilhante e decotada colada no corpo. Passara a assumir o visual andrógeno de Bowie. Ao vê-lo sua mãe desmaiou. Como era previsível, foi expulso de casa. Seus pais, coitados, eram católicos fervorosos.
Sem opção, pegou o rádio e foi procurar abrigo na casa de algum amigo. Com exceção de um, todos se negaram. Acharam comprometedor. Mas os olhos de Olavinho brilharam ao vê-lo. Entusiasmado, Olavinho o levou para morar em seu quarto. Escondido da família, é claro. Mas não deu certo. Camel sacou tudo quando Olavinho confidenciou que sempre usava escondido as roupas da irmã e adorava cantar Piaf. Agradeceu e pulou fora.Não era nada daquilo. É aquela coisa. Como muitos, Olavinho interpretou mal os sinais. É da vida...

Novamente pegou o rádio e decidiu se mandar prá Porto Alegre. De carona, pelo retrovisor do caminhão via Entrevero do Sul ficar para trás. Ao longe a torre da igreja começava a sumir. Mas muito antes do necessário a carona terminou. O caminhoneiro tentou "se passar" com ele. Foi seu batismo de fogo. Começou a se ligar. Ser vanguarda tinha seu preço. É a história dos sinais.

Aos trancos e barrancos chegou à capital. Maravilha, pensou. Não demorou muito e descobriu a Osvaldo Aranha. Aquele era o mundo que sempre sonhara. Lá podia "ser ele" em tempo integral e sem ser importunado. Mas como tudo o que começa um dia acaba Bowie sepultou Ziggy. E Camel fez o mesmo, claro.

Durante algum tempo ficou com as antenas em estado de alerta esperando o próximo movimento. Em meados de 76 sintonizou uma rádio de Londres e pirou o cabeção com o movimento punk. Aquela sonoridade virulenta... Três acordes e era isso. E a estética também agradou Camel - mas demorou a descobrir que clara de ovo era o canal prá deixar o cabelo arrepiado. Botou tachinha no nariz, coturnos, roupa rasgada e saiu chutando tudo o que tinha pela frente. Foda-se a sociedade de consumo, foda-se a família, foda-se o Estado, foda-se tudo...!! O mundo é uma merda mesmo !

Mas o início dos anos oitenta se apresentaram difíceis para Camel. Já não era adolescente e as grandes referências não estavam mais tão claras. O movimento punk perdera fôlego e a onda tava meio quebrada. Ao mesmo tempo surgia a new ave e o dark, entre outros.
Em crise de identidade, passou a vagar pelo Bonfim meio sem saber prá que lado seguir. Nunca estivera assim. Sempre soubera antes que todos. Agora via a fauna toda desfilando pela Osvaldo mas sua bússola parecia emperrada. Até que num tórrido sábado à tarde tudo aconteceu...
O asfalto parecia derreter.
No sentido contrário vinha uma pessoa vestida com um casacão preto, coturnos, cabelos encaracolados desbastados nos lados e altos em cima, óculos e algo pendurado no pescoço. Ao se aproximar viu que o tal objeto pendurado era o acento de um vaso sanitário.
Atônito, congelou.
Tudo o que enxergava era uma luz branca vinda do infinito. E um filme da sua vida passou por sua cabeça.
Ali, Camel - o camaleão - deixou de existir.
Ah, o cara do acento sanitário pendurado no pescoço era Edu K.
Camel nunca soube quem era, mas sacou que era hora de parar.
É a ordem natural das coisas.

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