quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O incrível caso do homem que via música.

A escuridão da montanha era rompida pela tímida lua que, curiosa, procurava espiar por entre as nuvens o que se passava ali embaixo.

- Shit ! What the hell ! What the hell ! gritava descontroladamente Armelindo Nonato, enquanto descia a encosta deslizando pelas escarpas a toda a velocidade com suas alpargatas cor de abóbora...

Bom, mas isso é o fim da história. Voltemos ao início.

Armelindo sempre fôra um sujeito pacato. Bóia-fria e temente a Deus, tocava a vida pulando de fazenda em fazenda, ziguezagueando pelo sertão carregado pelos paus-de-arara a procura de trabalho. Quando encontrava, era de sol a sol e de segunda à sábado. Dureza total. Quando não estava na labuta, descansava o maltratado corpo ouvindo música em seu radinho/gravador, nas redes dos alojamentos das fazendas. Era o seu divertimento; quase uma obsessão. Sem preferência quanto a estilos, escutava todas as músicas com reverência quase que religiosa. Prestava atenção em cada instrumento, nota e acorde, muito embora não soubesse bem como identificar cada situação. Nem interessava. Queria mesmo era absorver a obra em toda a sua plenitude. Amava a música e isto lhe bastava.

Entretanto naquela manhã, ao acordar notou algo diferente. A melodia que saía do radinho parecia estar sendo processada de forma diferente pelo seu cérebro. Uma sucessão de imagens desfilava num estranho encadeamento com o conjunto de sons da música que ouvia. Muito estranho, pensou. O que Armelindo ainda não tinha se dado conta é que não apenas escutava; agora via as músicas. Sem saber como ou por quê, transformava ondas sonoras em clipes musicais que só ele via. Uma aptidão que apareceu repentinamente. Do nada.

Como um bebê, aos poucos foi descobrindo o novo mundo que se descortinava. Mesmo sem saber como lidar com a situação, foi acumulando experiências e inferindo conclusões pelo método mais simples da construção de conhecimentos: a dedução. Assim, deu-se por conta que vez ou outra acontecia de ter uma bad trip ao escutar determinadas músicas. Nine Inch Nails, por exemplo, era garantia de terror. Black Sabbath, sobretudo o álbum Mobe Rules, nem se fala. Mas para dormir, por acaso descobriu que Moonlight Serenade, do Glenn Miller, era ótima. Com ela, passeava nas nuvens e adormecia entre beldades celestiais. Garantia de leveza e sonhos coloridos.

Com o tempo passou a nem precisar ouvir. Bastava uma melodia qualquer vir-lhe à cabeça. A simples associação de algum objeto ou situação à qualquer música era suficiente. Quase que instantâneamente o clipe era projetado em sua mente. E sobre isso tinha menos controle ainda, pois as situações cotidianas oferecem um sem número de condições nas quais pode-se fazer associações com música. Quem nunca olhou para o céu e lembrou de "nuvem passageira, do Hermes Aquino ? Mas a freqüência deste tipo de acontecimentos aos poucos foi aumentando, praticamente inviabilizando a vida de Armelindo. Certo dia quase atorou os dedos dos pés enquanto capinava na lavoura. Tudo porque um simples pardal pousou ali perto, lembrando-lhe "tico-tico no fubá". Saiu capinando a toda velocidade. Só parou ao ser contido aos berros pelos colegas, que assistiam a cena espantados.
Mesmo assim, com receio de ser taxado como louco, guardou segredo sobre o que se passava.

Situações embaraçosas também começaram a acontecer com certa regularidade. Je t'aime moi non plus, por exemplo, foi uma das músicas que mais lhe trouxe problemas. Bastava ver uma mulher vestida de forma mais ousada e deu. Lá vinha Je t'amie na sua cabeça; com gemidos e tudo o mais. Uma dessas situações vexatórias ocorreu quando uma certa viúva, que usava justíssimo vestido preto e com um generoso decote, o deixou em péssimos lençóis. Como era um cara extremamente religioso, daqueles que comungam todos os domingos, também naquele fôra à missa. Como de costume, na hora devida levantou-se do banco e dirigiu-se à fila dos que iriam comungar. Casualmente a viúva postou-se à sua frente. Pressentindo o perigo, tentou desviar seus pensamentos. Imaginou Idi Amin Dada de sunga amarela; George W. Bush dizendo "vou, mas volto !" etc. e tal. Não deu certo. Nada tirava a viúva de seus pensamentos. Convenhamos, era mesmo difícil tirá-la da cabeça. Quem a viu, sabe. Cansado, Armelindo cedeu e deixou-se levar por Je t'aime, que indecorosamente invadiu seus pensamentos. E adivinhem só quem era a protagonista do clipe ? Brigitte Bardot. Com direito a biquinhos, gemidinhos e sussurrinhos. E quem viu os biquinhos que a Brigitte fazia nos anos sessenta sabe do que estou falando. Torturante. Pelo menos na situação em que Armelindo se encontrava. Sem alternativas, prosseguiu na direção do altar sentindo-se o maior dos pecadores. Era mesmo quase capaz de sentir-se cutucado pelo tridente do diabinho. Mas o que podia fazer ? Estava além de suas forças. Seguiu em frente. Ao chegar ao altar o padre, ao entregar-lhe a hóstia disse a tradicional frase: "o corrrpoooo de Crristooooo". E ele só pensando no da viúva. Obviamente seu próprio corpo denunciou seus pensamentos. Ao voltar ao seu lugar as pessoas notaram a situação. E ficaram horrorizadas. Virou o alvo predileto dos maledicentes da comunidade. Nunca mais foi a missa.

Em pouco tempo este estado foi dominando-o por completo. Sem encontrar alternativas, pensou várias vêzes em suicídio. Mas assim que a Marcha Fúnebre vinha à cabeça, desistia. Achava muito triste.
Quase conformado com a situação, tentou levar a vida naquelas condições mesmo. O que fazer ? Mas o destino reservara outra surpresa. Para espanto geral, da noite para o dia amanheceu falando em inglês. Seus companheiros de rotina ficaram assustadíssimos. Como aquilo era possível ? E como geralmente acontece quando nos deparamos com algo aparentemente inexplicável, a primeira hipótese que veio às suas cabeças foi a de que Armelindo estava possuído por algum espírito do mal. Era caso para exorcismo. Sem dúvida, diziam alguns ao "pé do ouvido".
Contudo, Armelindo secretamente sabia o que acontecera. Os clipes começaram a vir legendados. Em inglês; mesmo em se tratando de música brasileira. Incrível. Mais preocupado do que nunca, concluiu que só havia uma saída: abandonar o velho radinho e subir a montanha. Isolado de tudo e de todos, com apenas a brisa das montanhas soprando, haveria de livrar-se da maldição. E assim fez.

Tudo ia relativamente bem até o dia em que uma forte tempestade de vento provocou uma avalanche. E as pedras rolaram. Imediatamente like a rolling stone, de Bob Dylan, invadiu-lhe os sentidos, desconcertando-o por completo. Em pânico, Armelindo Nonato saiu berrando com todas as suas forças:

- Shit !!! What the hell ! What the hell ! enquanto descia a montanha em tresloucada corrida.

E a lua, bisbilhoteira como nunca, procurando espaço entre as nuvens...como sempre.

Um comentário:

  1. fico imaginando como seria ao escutar algumas músicas dos 10 CDs mais vendidos do Brasil!
    Muito om texto, parabéns!!
    um abraço do Edmilson!

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