quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Inteligência musical

Hoje o tema não é poesia, tampouco histórias ou contos. É o seguinte: caiu-me em mãos a lista dos dez discos mais vendidos da história da música brasileira da época pré-pirataria. O que me importa é a discutível qualidade musical dos que freqüentam a lista. E mais, entre eles, cinco são cantados por pessoas que simplesmente não são cantores. Aí foi demais e resolvi retomar uma reflexão antiga sobre o tema.

Muitas vêzes ao criticar músicas ou músicos que fazem grande sucesso, me foi dito que minha visão é elitista; de que não gostava dos que fazem mais sucesso por serem populares, etc. e tal. Embora não fosse por isso, ficava sem uma resposta mais convincente. A única coisa que me ocorria era de que a mídia fazia boa parte do serviço.

Mas permanecia o dilema: por quê Chico Buarque, Paulinho da Viola, Tom Jobim, Mozart, Bach, etc. não podiam ser artistas populares; pelo menos tão populares quanto os mais ouvidos ? Seria porque apenas alguns eleitos tem sentidos mais apurados ? Seriam destinados inexoravelmente apenas a uma elite de ouvintes ? Nem vou esperar a conclusão para dizer que não. Todos podemos gostar de músicas mais sofisticadas.

O que acontece é o seguinte: segundo a Teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner, todos temos um conjunto de inteligências, chamadas múltiplas. Entre estas, a chamada Inteligência Musical, que seria uma espécie de "habilidade para apreciar, compor ou reproduzir uma peça musical (...)." Bom, mas não estou dizendo que todos possam ser grandes compositores, músicos, etc. Só estou falando da possibilidade de desenvolvimento de um sentido mais apurado de exigência no que se refere ao padrão de consumo de um bem cultural específico: a música. E é exatamente aí que reside a grande notícia: essa capacidade de apreciação; esta espécie de paladar auditivo não é um fator meramente genético, isto é, pode ser desenvolvido tal como o hábito de comer alface. É isso mesmo, basta que o processo de educação musical seja estimulado ao longo da vida. Então, não é uma visão elitista exigir maior complexidade musical dos artistas que fazem sucesso. A aceitação do contrário é que o é. E complexidade é a palavra exata.

Raciocinem comigo: por quê será que adoramos "atirei um pau-no-gato" quando crianças e deixamos de gostar quando crescemos ? Obviamente porque nosso grau de exigência em função do aprimoramento de nossa inteligência musical alterou-se. Aquele tipo de música com melodias, harmonias, arranjos e letras simples passou a não mais nos satisfazer. A hipótese que coloco é a de que esse processo de evolução da exigência rumo a uma complexidade musical maior é interrompido para a maioria das pessoas, num determinado estágio de desenvolvimento a partir do qual simplesmente ficam estagnadas. E passam a aceitar qualquer coisa compatível com o grau de inteligência musical de que dispõem. Assim, qualquer coisa que tenha um refrãozinho do tipo lalaiá; rimas como "coisa louca e beijo na boca" etc. e tal conseguem ter grande aceitação por esse tipo de público, que é maioria. Basta que o velho esquemão seja acionado pelas gravadoras. E o esquemão, que em outros países é considerado crime, consiste no pagamento de espaços na mídia para a colocação exaustiva dos seus produtinhos musicais no ar assim como patrocínio de "mordomias" aos programadores das rádios, sobretudo as FM's. Desta forma criam espaços gigantescos para seus artistas eleitos condenando a imensa maioria dos artistas - mesmo que os trabalhos destes tenham um nível de elaboração e sofisticação infinitamente superior aos dos queridinhos abençoados - ao quase anonimato. E assim o baixo padrão de exigência músical vai ficando cada vez mais rasteiro e, como conseqüência imediata, a inteligência musical da maioria vai sendo nivelada por baixo.

Bom, mas de tudo isso resulta a conclusão de que todos podemos desenvolver nossa inteligência musical e, consequentemente, exigirmos uma maior complexidade musical. Não há nenhuma determinação fatalista que designe a apenas alguns o desenvolvimento de um sentido mais apurado musicalmente falando. Então, não há nada mais elitista do que achar que exigir maior sofisticação é tentar elitizar o gosto musical. O complicado é defender a idéia de que o povo só pode consumir atirei um pau-no-gato. E há quem o faça achando estar defendendo os interesses populares. Não estão. Definitivamente não.

Mas uma questão ainda me incomoda: se existe um largo espectro de músicos, porque as gravadoras elegem apenas os mais infantis, musicalmente falando, para serem seus produtos favoritos ? E os meios de comunicação ? Realmente são feitos apenas para venderem produtos ou não tem nenhuma responsabilidade pelas coisas serem o que são ? Huum, lá vem o cara achando que os meios de comunicação são os culpados por tudo. Confesso que até já fui dessas pessoas. Agora tem uma coisa: o oposto de achar que eles são culpados por tudo é achar que eles não são culpados por nada. Aí também não. Não sou tão inocente assim.

Tem mais uma coisa: sabiam que a música é uma das últimas referências a serem esquecidas pelos pacientes com Mal de Alzheimer ?

Para encerrar, deliciem-se com a tal lista dos discos mais vendidos da história da música brasileira. Fico pensando se teríamos o prestígio musical que temos no exterior, se dependêssemos desses gloriosos artistas...
Aí vai: do décimo ao primeiro, para causar suspense:

10º) Terra samba ao vivo e a cores (1998) - 2.450.411 cópias
9º) Mamonas Assassinas (1995) - 2.468.830
8º) Xou da Xuxa (1986) - 2.689.000
7º) Leandro e Leonardo - Um sonhador (1998) - 2.732.735
6º) Segundo Xou da Xuxa (1987) - 2.754.000
5º) Quarto Xou da Xuxa (1989) - 2.920.000
4º) Só prá Contrariar (1997) - 2.984.384
3º) Leandro e Leonardo (1990) - 3.145.814
2º) Xou da Xuxa 3 (1988) - 3.216.000
1º) Pe. Marcelo Rossi - Músicas p/louvar o senhor (1998) - 3.228.468

Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos e Gravadoras

Ainda voltarei ao assunto para esmiuçar melhor o tema.