terça-feira, 27 de abril de 2010

Legalizem já !

Atendendo ao chamamento à discussão a respeito da descriminalização da maconha e do aborto proposta pela amiga e escritora Jana Lauxen em seu blog http://janalauxen.blogspot.com/2010/04/legalize.html , vou meter meu bedelho no assunto e, se possível, abordá-lo de outra forma pois repetir os argumentos seria algo sem sentido.

Simplificadamente falando, agradam-me mais as sociedades liberais - do ponto de vista do reconhecimento das liberdades individuais - do que as que primam pela regulação legal das atitudes que dizem respeito às práticas dos indivíduos. Quando falo em práticas individuais refiro-me ao conjunto de ações cujos reflexos recaiam apenas sobre quem as praticou. Portanto, entendo que a criminalização, ou não, deva se dar somente em relação aos atos praticados na relação com outras pessoas, e não a si próprios. E desde já adianto que discordo da idéia de que o usuário de drogas fica mais predisposto a cometer crimes. Se assim fosse certamente não teríamos 6 bilhões de pessoas na face da terra. Mas vamos adiante.

Então, considero que tanto a prática do aborto como o uso da maconha enquadram-se no perfil de atos individuais - muito embora existam correntes sociológicas que conseguem transformar quase que todos os atos individuais em atos sociais - que não digam respeito apenas ao indivíduo - do que discordo frontalmente
Quanto à maconha, em post anterior tratei da história e razões que levaram a sua criminalização. Está lá em http://soparamorcegos.blogspot.com/2009/08/descriminalizacao-da-maconha-mas-por.html . Então se você pensou que razões de saúde motivaram a interdição está redondamente enganado, pelo menos na origem de sua criminalização. Mas atualmente, porque continua sendo criminalizada ?

Mesmo hoje existem correntes conflitantes quando o assunto são os malefícios causados por ela. Mas consideremos, então, que a maconha realmente seja nociva - e em alguma medida realmente deve ser - seria este um bom motivo para que fosse tratada como caso de polícia ?

Antes de responder vamos dar uma raciocinadinha: todos aceitamos que gordura animal e hidrogenada fazem mal a saúde. Você já imaginou alguém indo em cana por estar carregando um quilo de costela gorda para aquele churrascão de domingo (?), ou ainda, por estar se lambuzando com um sorvetão ? Obviamente que não. Então, a questão não parece passar pelos malefícios à saúde.

Por outro lado, há quem diga que a maconha serve como escada para que o indivíduo passe a usar drogas mais potentes. Não creio nisso. Também já tratei da tal "lógica da escada" em
http://soparamorcegos.blogspot.com/2009/06/logica-da-escada.html .

Ah, mas comprando maconha o usuário está capitalizando o traficante ! Pois eu vos digo: a repressão policial, ao realizar apreensões de drogas encarece o preço do produto - lei da oferta e da procura - e assim nada mais faz do que rentabilizar ainda mais o capital investido pelos traficantes, fortalecendo-os. Porque, então, não darmos uma rasteira no traficante retirando a produção e distribuição de suas mãos ? Sim, falo em normatizar a produção e distribuição, retirando-a do controle do submundo. Bom, mas alguém dirá que se não houver consumidores não haverá tráfico. Este é um falso dilema. Desde que o mundo é mundo, em toda e qualquer sociedade existe uma grande parcela de pessoas que usam substâncias psicoativas que alteram os estados da mente. Isto é fato. E de pouco adianta projetar um mundo idealizado onde as pessoas fossem assim ou assado; este mundo nunca existiu e tampouco existirá. Nem mesmo sociedades fundamentalistas, como por exemplo o Irã, estão livre das drogas, logo, razões religiosas também não são suficientes para tornar-nos imunes à elas. Por isso, nem pense que se todos fossemos anjinhos celestiais tudo ficaria bem; no máximo construiríamos um mundo chatíssimo.

Na verdade, nunca como antes o mundo consumiu tantas drogas lícitas - somente a estimativa do consumo de maconha supera o consumo de anti-depressívos e ansiolíticos; as demais drogas ficam abaixo do consumo das legais. Parece mesmo que a humanidade está sob um profundo mal-estar. Mas, por mais contraditório que pareça, não pense que quem usa drogas necessariamente o faz para "fugir" do mundo. É um erro fundamental. As pessoas as usam pelas mais variadas motivações - inclusive pelo prazer que proporcionam (pelo menos no início).

A questão, então, não é defender a idéia de que usar drogas é bom: não é ! Portanto, fique longe delas ! O que não dá mais para conceber é que fiquemos fazendo de conta que o modelo repressivo - absolutamente inconseqüente, que consome bilhões de dólares e empurra para a prisão milhares de jovens - que poderiam muito bem serem tratados de outra forma - continue sendo aplicado como se fosse a melhor das estratégias possíveis. Essa grana toda seria muito melhor investida em campanhas de conscientização e em tratamentos mais adeqüados do que a prisão.

Mas para isso é preciso nos livrarmos da visão simplória de que todas as questões devam ser resolvidas com base na submissão pelo medo da punição. O problema é que essa forma de ver o mundo está tão enraizada no imaginário da nossa civilização que, ao menor entrave, pede-se leis mais rígidas e cadeia e, não raro, reivindica-se pena de morte - de preferência com execução da forma mais cruel possível. Isso é mais ou menos o que está no senso comum; mas senso comum, sabe-se, é a forma mais rasa e preguiçosa de pensamento.

Mas e o aborto ? Embora seja um assunto complexo porque há toda uma discussão a respeito de em que momento já existe vida ou, ainda, se esta só se materializa a partir da existência consciente etc. e tal, o fato é que é praticado aos milhares todos os dias.

A bem da verdade, quanto a mim não tenho uma posição tão clara e definitiva como em relação a maconha, mas há um fato irrefutável: centenas de milhares de abortos são realizados todo o ano e sob condições sanitárias as piores possíveis. Neste contexto, milhares de mulheres perdem a vida clandestinamente em obscuras clínicas - e não precisa ser assim.

O que acho é que a descriminalização abre a perspectiva para que quem entender ser a melhor atitude, que o faça sob condições onde o risco de morte seja minimizado.

O que não pode ocorrer é que uma lei divorciada da realidade objetiva sirva como atenuante à nossa omissão quanto ao que acontece todos os dias. Nós podemos e devemos deixar livres as pessoas para que possam elas próprias decidir sobre o que entendem ser melhor para si, independentemente de nosso ponto de vista.

Questões religiosas, por exemplo, são de exclusivo foro íntimo não devendo, de maneira alguma, influir em decisões que dizem respeito ao estado laico. E estou dizendo isso pois é assustadoramente crescente a influência religiosa em assuntos de Estado, quer seja pela eleição pura e simples de seus membros aos parlamentos bem como a subserviência cada vez maior de políticos em face da procura de seus votos. Neste contexto, quantos políticos há dispostos a enfrentar de maneira racional tanto a questão da descriminalização da maconha quanto do aborto ? Não custa lembrar que a Constituição prevê a liberdade de culto religioso, mas também está implícita a liberdade de não comungar de nenhum deles. E a legislação deve servir a todos e não há um só segmento social. Digo isso pois freqüentemente argumentos religiosos são usados para sustentar uma ou outra tese, quando o Iluminismo representou a conquista da possibilidade (e o dever) de que a razão presida a análise, e não o contrário.

Portanto, o que me encharca de radicalidade é a cláusula pétrea em minhas convicções de que as questões devem ser abordadas considerando sempre a perspectiva de que cabe ao indivíduo decidir sobre o que é melhor para sí, tomando-se como base a definição do que considero como ato individual de que falei no início.

É isso aí ! E que sigam as discussões a respeito dos temas. Ainda há muito para ser dito.

2 comentários:

  1. Meu querido irmão Jorge como sempre arrebntando nos textos.

    Véio deletaram meu cavalo no dia 29/04.

    Porém, já tem um potro novo cavalgando: A Horse With No Name, Again.

    O endereço é: http://cavalosemnome.blogspot.com

    Grande abraço

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  2. Fala Jorge, meu querido!
    Adorei o texto, e vou inclusive linka-lo junto ao meu texto, lá no Blogue da Jana.
    Muito prudentes e corajosas suas reflexões.
    Um abraço meu!
    ;)

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